segunda-feira, 21 de abril de 2014

7 minutos

Olhei ao redor do quarto. Poderia ser a última vez que eu contemplaria esse lugar que reflete tudo o que sou, impresso em cada detalhe: nas fotos que retratam a minha metamorfose, no pôster e nas bandeiras do Gigante Celeste que tanto me masculinizam, nas diversas bonecas que me eternizam como menina, num contraste entre a vaidade que não possuo e o meu instinto maternal. Abri o guarda-roupa escasso e, quase sem nenhuma escolha, retirei as peças que me envolveriam. O último detalhe da produção, que carecia de glamour, era a flor que enfeitava e suavizava a agressividade dos meus fios crespos. 

Atravessei três cidades sob a chuva forte que caía na tarde de uma quarta-feira de outono. Não quis me atrasar, ainda que o excesso de tempo pudesse causar ansiedade. Nós tínhamos um combinado. Será que você teria coragem de me deixar ser consumida pelas horas, como naquela vez? Agora as razões do encontro eram outras, tratava-se apenas de um empréstimo, uma gentileza sua para que o meu acesso fosse facilitado. Gentileza também da vida, que reconheceu o quanto eu padeci no quarto, sozinha, toda vez que a bola sacudia as redes. Era em você que o meu sentido ia, imediatamente. Agora eu estaria vendo tudo de perto, libertando, junto à multidão,  os meus gritos cativos. Dessa vez, mais do que em nenhuma outra, você estaria comigo, materializado em forma de uma credencial em seu nome, o nome de santo, o nome mais bonito, o mesmo do meu primogênito já gerado pelo meu coração.


Com a antecedência prevista, chego ao lugar que você sugeriu, batizado com uma referência ao movimento estético da aristocracia francesa. Escolho uma mesa pequena da calçada, encosto o guarda-chuva fortemente marcado pelo meu trajeto e alivio o incômodo causado pelos meus sapatinhos novos e feios que comiam os meus pés molhados. A televisão, sintonizada num canal esportivo, falava sobre o clube que você queria ver em campo lá do outro lado do mundo. Ela servia de companhia e amenizava a passagem do tempo que avançava.
Um suco. Um chiclete. O meu olhar em direção à avenida. O relógio bem na minha frente não me deixava esquecer do compromisso. Será que você se lembrava dele? Será que você seria vencido pela vergonha? Vergonha da sua melhor parte? 

19 horas. Todos minutos posteriores a essa hora seriam prazo extra. Por mais quanto tempo eu esperaria? Observo todos os homens que passavam por ali, bem vestidos em sua maioria. A chuva, agora mais branda, era o elemento mais desejado por mim como composição de cenário, lembra de me ouvir dizer isso sempre?
19h09. Meio desatenta, retomo a atenção para avenida outra vez e vejo um homem alto, correndo, vencendo os pingos. Era você. "O tempo é só meu e ninguém registra a cena. De repente vira um filme todo em câmera lenta."  Sorrio e, talvez, inconvenientemente, bato o dedo indicador no punho, sinalizando o seu atraso curto, mas que poderia ser, novamente, uma ausência.

Era você. Era, finalmente, o seu abraço e o beijo de saudação. Breves. Era sua voz pela primeira vez. Era você e um certo desconcerto notável somado a uma respiração ofegante obtida em seus passos largos. Um rosto sem defeito, marcado pela presença do rubor que só você tem, aquele rubor. Era o seu cabelo castanho e brilhante que os meus dedos de unhas curtas desejam tocar. Eram os olhos que tanto me intimidam. Olhos de piscadas constantes. Era o homem mais bonito que eu já fui ver. Era você vestido, bem vestido, preenchendo um terno escuro e uma gravata que a minha memória confusa insiste que é vermelha, mas não tenho certeza.

Eu não tinha muito tempo. Em pé, com uma pressa visível, você providencia o empréstimo, dizendo "o que é que a gente não faz pelo Cruzeiro?". Consegue perceber que o que nos une é bem maior  que o que nos separa? Mas isso, a seu ver, deve ser apenas mais uma das coisas que eu fico na cabeça e que na verdade é seu jeito sutil de me chamar de louca.
Dediquei várias horas do meu dia em um longo percurso para ter 7 minutos. Tempo máximo que consegui te roubar. Cada pergunta ou comentário que eu fazia era uma forma de estender sua presença, como nas mil e uma noites. Você se senta, atendendo o meu pedido, e escreve o código óbvio no guardanapo com a mão em que está o anel que demarca território e que por muito tempo foi ocultado. Comenta sobre a sua viagem do dia seguinte, para a cidade luz, onde fica a avenida que eu soube que existia aos 14 anos, no livro "De Paris, com amor", a Champs - Elysées. 

Sem conseguir estender mais a minha fala, sua pressa me vence. "Depois conversamos com calma." O seu abraço e o beijo de despedida. Breves. Fico sem saber o seu cheiro. Desejo boa viagem, sabendo que a sua ausência era certeza para a próxima quinzena. Você precisava voltar ao trabalho, pois no dia seguinte viajaria para o velho mundo.
19h16. Passaram-se 7 minutos entre a sua chegada e a sua partida que eu não acompanhei com os olhos. Ao meu redor, as mesmas pessoas que ocupavam as mesas e não me notavam. Invisibilidade própria de quem possui grandes formas. O tempo só passou pra mim. Só acabou pra mim.


Tento facilitar o troco ao pagar a conta de valor baixo. Recebo um olhar indiferente, talvez pela insatisfação do pequeno consumo. Um suco. Um chiclete. Poderia ser mais, moço, mas só durou 7 minutos. Desconsidere o tempo da minha espera, justifico assim, mentalmente, pro gerente que me atende.

Encarei o trajeto longo, novamente. Dessa vez com o acréscimo do horário de pico. Entrei naquele ônibus que você conhece bem e que falávamos outro dia. Volto pra casa com uma parte sua disfarçada de empréstimo. Volto pro meu mundo velho enquanto você se prepara para partir pro velho mundo. A minha porção da Europa fica na charmosa arquitetura em volta da praça da Liberdade que vejo pela janela embaçada.
Esse encontro se estende até os dias de hoje. Ainda temos o 'jogo de volta', a devolução. Tomara que ultrapasse 7 minutos. É muito pouco.



Nenhum comentário:

Postar um comentário